quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

JOÃO BERNARDO

[em Educação_&_Sociedade, 1995, ano XVI, nº 51]



João Bernardo


Aridez e Futilidade: Parábola da mais –valia absoluta e da mais-valia relativa


[Este artigo retoma o tema de uma palestra que proferi a 7 de Novembro de 1991 na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.]


Publicado pela primeira vez em 1949, precisamente quando o stalinismo se iria em breve desagregar e o welfare state começava a implantar-se nos países industrializados da esfera norte-americana, Nineteen Eighty-Four (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) de George Orwell descreve, apesar disso, um mundo onde se extremariam as características que marcaram o regime soviético durante a vigência do primeiro e segundo planos quinquenais. Embora a acção ocorra apenas num dos três grandes Estados fictícios, a Oceania, percebemos que os outros dois, a Eurasia e a Eastasia, obedecem ao mesmo sistema social, marginalizando completamente a produção de bens de consumo e sustentando a economia em formas trabalho-intensivas.
Mil Novecentos e Oitenta e Quatro situa-se na linhagem das obras que, com paixão ou horror, anteviam no regime staliniano o modelo da convergência de todos os tipos de capitalismo. E não parecera isso lógico? Enquanto os restantes países industrializados se debatiam na década de 1930 com uma crise económica sem precedentes, na União Soviética conseguiam-se prodigiosas taxas de crescimento. Ninguém no Ocidente ignorava a feroz repressão e desde 1930 fora denunciada, sem margem para dúvidas, a existência de campos de trabalho forçado onde se sujeitava um enorme número de pessoas a uma verdadeira escravatura de Estado. Mas a estes factos era impermeável a incredulidade de muitos e a indiferença dos restantes. O sistema soviético encontrava então a sua justificação na eficácia económica. Que melhor libelo contra os regimes parlamentares do que a acumulação de desemprego e a incapacidade de resolver a crise? Engenheiros e operários qualificados tinham feito filas de espera à porta dos consulados soviéticos nos Estados Unidos, seduzidos pelas oportunidades de trabalho criadas pelos primeiros planos quinquenais. Foi esta a razão profunda do prestígio de que o regime staliniano gozou, acrescido ainda, a partir do início de 1943, pelas decisivas vitórias alcançadas contra os exércitos nazis. Não eram críticas, mas elogios ou, melhor ainda, invejas que o Kremlin despertava em vastos sectores das classes dominantes dos outros países. Parecia ser a alternativa viável e muitos dos seus adversários, na direita conservadora ou na esquerda radical, viam com tanto mais apreensão o futuro do capitalismo quanto consideravam que inevitavelmente caminhava no rumo traçado por Stalin. A utopia no célebre romance de Orwell consiste em levar a um ponto máximo as características da sociedade soviética.
Nenhum sistema baseado numa produção trabalho-intensiva e numa severa limitação do consumo pode existir sem uma forte repressão. Mas enquanto os totalitarismos conhecidos procuraram reprimir os comportamentos, o regime descrito em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro pretende reprimir os próprios pensamentos dos membros do Partido e mesmo os desejos, até nas suas manifestações elementares.
Para tal os dirigentes do universo orwelliano deram livre curso à utopia de Leibniz, uma linguagem inteiramente desprovida de equívocos, que cunhasse cada palavra com um único sentido possível. O Newspeak ocupa a posição-chave no romance, é o fundamento do regime e, ao mesmo tempo, a sua principal criação. O uso de uma linguagem deste tipo implicaria uma completa obediência às concepções desejadas pelos seus autores, mas isso supõe o absoluto controle do inter-relacionamento social. As palavras e as suas acepções geram-se na vida em comum. E o sentido de qualquer palavra é ambíguo porque cada um de nós, enquanto indivíduo, irredutivelmente difere dos restantes, mas partilhando todos juntos, na sociedade, essa diferença. A ambiguidade é a condição que permite entendermo-nos no desentendimento, falar os mesmos termos e dizer com eles coisas distintas, sermos indivíduos e sociabilizarmo-nos. É porque, no deserto sertão do nordeste brasileiro, Graciliano Ramos reduziu a um mínimo a sociabilidade dos personagens de Vidas Secas, que as suas possibilidades de discurso são tão limitadas e, à falta de palavras, só gritando podem tornar-se expressivos. Mas num universo concentracionário como o descrito por Orwell as relações entre indivíduos são obrigatoriamente frequentes e múltiplas. Como seria então possível liquidar, na linguagem da sociedade, a iniciativa comum na criação de palavras novas e a ambiguidade resultante do uso pessoal de cada termo?
Para que as relações sociais não sejam criadoras nem das palavras, nem dos seus sentidos, têm de ser mediadas pelo mesmo centro que elabora o dicionário. Não é legítimo em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro um membro do Partido contactar outro senão através da prévia inserção de ambos na dependência de uma comum hierarquia. A regra da verticalização das relações não pode sofrer a mínima excepção, para que o vocabulário se reduza ao autorizado e seja absolutamente unívoco o sentido de cada termo.
E para se manter integral a pureza do dicionário é preciso abolir a paixão nas relações sexuais. A paixão é o lugar mais extremo da contraditoriedade da linguagem onde, na ilusória fusão de duas individualidades, cada um fala para si julgando falar ao outro. É a paixão que demonstra a impossibilidade do solilóquio ou, talvez melhor, demonstra que mesmo para nós próprios as nossas palavras são ambíguas. Por isso aquele totalitarismo absoluto que inventara o Newspeak exige a castidade, interrompida apenas pelas necessidades de reprodução da espécie. Os cientistas procuram até obter a cópula sem orgasmo, porque o prazer sexual cria um universo de felicidade, exterior às capacidades de controle do Partido, enquanto a castidade induz um estado de histeria propício ao culto do chefe.
Mas é necessário algo mais para manter o discurso nos estreitos limites da única definição aceite – e aqui começamos a passar das personagens para o seu autor. Se Orwell concebesse a prática como anterior aos conceitos, então a forçosa inadequação da linguagem a uma realidade em mutação seria suficiente para introduzir a ambiguidade nas palavras. Mesmo exercendo uma fiscalização constante sobre todas as formas de relacionamento, os senhores do dicionário só podem ser senhores do sentido dos discursos num mundo em que a acção não for anterior, nem contrária, à consciência. Apenas num quadro ideológico assim definido é possível apresentar o controle absoluto sobre as palavras como garantia do controle absoluto sobre o pensamento e os desejos. Para eliminar as concepções heréticas e a vontade dissidente mediante a anulação dos termos que as veiculam seria necessário que a criação da realidade dependesse da prévia imagem verbal, que o universo das palavras imperasse sobre o universo da acção. Assim a história ficaria abolida, pois o controle das palavras, permitindo dominar o presente, permitiria também expurgar o passado e impedir o futuro. E então o totalitarismo que governa Mil Novecentos e Oitenta e Quatro incluiria em si todo o existente.
É este o império das palavras e a actividade opressiva do Partido vai direito à limitação do vocabulário e à manipulação dos sentidos do discurso. Nem a tortura tem naquele regime outra finalidade senão a de destruir a duplicidade no uso dos termos. É necessário que a cobardia do torturado o torne, aos seus próprios olhos, de tal modo abjecto que projecte essa vileza sobre os seus anteriores contactos culposos e, neles destruindo o afecto, restrinja finalmente as palavras ao sentido obrigatório, do qual vãmente pretendera escapar.
No entanto, os trabalhadores em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, embora levando uma vida material miserável, são capazes de um inter-relacionamento próprio, alheio à interferência do Partido. Podem conviver, beber em conjunto, amar-se ou odiar-se, até cantar, fora de quaisquer obediências hierárquicas e sem que isto pareça pôr minimamente em causa a estabilidade do regime. Os mecanismos da repressão absoluta existem somente no interior do Partido e incidem apenas nos seus membros. O que torna tão perigoso o relacionamento social directo nos meios dirigentes e tão inócuo quando ocorre entre trabalhadores? George Orwell frequentemente aborda este paradoxo, crucial no livro, sem nunca lhe dar resposta.
O seu quadro de análise estava, afinal, limitado por toda uma herança jacobina que nega a eficácia subversora das relações sociais espontâneas e indiferentes ao aparelho de Estado. O que pode parecer surpreendente, da parte de quem foi um crítico do leninismo. Num quadro ideológico em que a base do poder real seria o controle exercido sobre as palavras e os processos mentais e em que, portanto, uma actividade social só teria resultados se fosse consciente, os trabalhadores definiam-se precisamente pela inconsciência da sua actuação. Não só o regime descrito em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, mas o próprio livro, é carregado do elitismo dos intelectuais profissionais. Se o poder reside no dicionário, para ele o perigo pode apenas vir dos membros do Partido, que se encarregam da redução e da manipulação das palavras. Todos os outros, os trabalhadores, são inofensivos.
Publicado em 1932 Brave New World (O Admirável Mundo Novo) de Aldous Huxley foi, como antecipação do futuro, muitíssimo mais perceptivo do que Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, que lhe é dezassete anos posterior. E no entanto Orwell tivera Huxley como professor em Eton.
Esse Mundo Novo, tão admirável, resulta da fusão de três tipos de sociedade, a norte-americana, a soviética e a fascista, como desde as primeiras páginas é caricaturalmente posto em relevo nos nomes dos personagens, que conjugam os de dirigentes políticos célebres de cada um dos campos. O fundamento comum, que permitira a convergência dos três regimes, é a sociedade de massas, entendida duplamente: do lado da produção, consiste no fabrico de enormes quantidades de artigos indiferen¬ciados, perdendo-se na massa dos objectos qualquer especificidade particular; do lado do consumo, consiste na redução das pessoas a padrões estereotipados, perdendo-se toda a individualidade na massa social. Desde a génese do capitalismo industrial a produção em série destinada a uma sociedade massificada é um princípio norteador, mas encontrou em Henry Ford o primeiro promotor sistemático em vasta escala, que com esse objectivo reorganizou as relações de trabalho, as linhas de fabrico, as características do produto e até a mentalidade do comprador. Por isso Ford tornou-se Deus em O Admirável Mundo Novo, a nova Bíblia é a sua autobiografia, My Life and Work, e a produção do Modelo T, inaugurada em 1908, marca o início do novo calendário. Em inglês a modificação é fácil, Ford substituindo Lord, o Senhor, e quanto ao resto bastou cortar o topo da cruz para a converter num T, símbolo dos objectos produzidos em série e, com eles, da nova religião.
O modelo social e ideológico que inspira O Admirável Mundo Novo é o taylorismo, tal como começou a ser aplicado na grande produção industrial norte-americana. Se para Orwell, e tantos outros como ele, o sistema soviético constituiria o pólo atractivo onde haviam de convergir os restantes regimes, para Aldous Huxley são os Estados Unidos a inspirar finalmente o desenvolvimento de todas as sociedades industrializadas, presidindo à sua convergência mundial. A utopia consiste aqui em levar a um ponto máximo as características da sociedade norte-americana.
Nessa utopia toda a economia funciona mediante o permanente estímulo ao sector dos bens de consumo e os processos de fabrico são capital-intensivos, para aumentar os ócios e facilitar as oportunidades de consumo. Só para evitarem os perigos da reflexão, que pode ser ocasionada pelo prolongamento do lazer, os dirigentes limitam a redução do tempo de trabalho. A reflexão é perigosa porque suscita a apreciação crítica e traz a discórdia, pondo em causa a estabilidade indispensável a um regime totalitário. São estas ocasiões de conflito que as autoridades querem a todo o custo evitar, em vez de aguardarem para lhes punir as consequências, porque um sistema assente no consumo de massas e numa produção capital-intensiva tem de praticar a conciliação, não a repressão.
Em O Admirável Mundo Novo a repressão é substituída por um conjunto de medidas que permitem a plena harmonia e previnem as insatisfações antes ainda de elas se manifestarem. A manipulação biológica transforma as classes sociais numa hierarquia de raças, escalonando as capacidades intelectuais de maneira a que os subalternos fiquem obrigatoriamente subordinados aos seus chefes. E o condicionamento psicológico, aplicado aos princípios elementares da moral, faz com que todos os elementos de cada uma das raças estejam satisfeitos com as funções que desempenham e o quadro que ocupam. De resto, a percepção directa do mundo é atenuada mediante o livre recurso a estupefacientes e a difusão de formas degeneradas de arte, que criam substitutos fictícios cujos resultados sensoriais são tidos como mais reais do que a realidade exterior. E assim se transformam os indivíduos no público, vivendo dentro de espectáculos supletivos da restante realidade e limitativos do comportamento. Enquanto diferente do objecto que lhe serviu de pretexto a arte é um convite à reflexão sobre essa diferença e, assim, a uma posição crítica ao mesmo tempo quanto à imagem artística e quanto ao seu modelo. Mas os espectáculos hiper-naturalistas que vigoram em O Admirável Mundo Novo têm como única função substituir a realidade exterior e suprimir qualquer reflexão crítica. A repressão pode não ter lugar e todas as aspirações são imediatamente satisfeitas porque este quadro restringe de antemão a amplitude e os tipos de desejo.
A ordem social não se baseia aqui na repressão, mas na assimilação, e é este o seu mecanismo totalitário. Adultos no trabalho, os indivíduos são infantilizados fora do trabalho porque se encontram condicionados contra a solidão. Mais ainda do que um prolongado ócio, a solidão dá oportunidade para reflectir, suscitando então a crítica ao regime existente e o aprofundamento das relações entre as pessoas, que se constituiriam como alternativa. E a permissividade e promiscuidade, obrigatórias em O Admirável Mundo Novo, ao impedirem o impulso sexual de se converter em paixão, mantêm as relações num estado de futilidade que bloqueia a sua consolidação. O estímulo ao consumo fundamenta a economia e a frivolidade dos relacionamentos provoca a superficialidade que, inibindo qualquer exercício da crítica, é a garantia mais forte da ordem vigente.
No confronto das duas utopias esclarecemos os mecanismos sociais. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro todos os contactos entre membros do Partido são mediados pelo nível hierárquico superior e, não podendo prossegui-los directamente, os indivíduos ficam obrigados ao isolamento. Nessa utopia da repressão absoluta as relações não conseguem aprofundar-se e, portanto, servir de base a alternativas, porque cada pessoa é mantida isolada. Porém, na utopia huxleiana da permissividade absoluta os indivíduos não aprofundam as relações por estarem condicionados contra a solidão. E podemos então compreender que isolamento e solidão são situações antagónicas. A solidão não é o contrário da relação, mas o seu necessário contraponto e na dialéctica entre ambas se exerce a crítica. A solidão é a oportunidade de fazer o balanço das experiências e de proceder ao juízo sobre as relações existentes; e a relação é a oportunidade de transformar praticamente o contexto em que o indivíduo vive, obrigando-o desse modo a avaliar-se criticamente. Para que os contactos se mantenham numa permanente superficialidade, para que nenhuns elos se consolidem que possam pôr em causa o regime vigente, é necessário afastar os indivíduos da solidão e não serão, assim, nem críticos da sociedade, nem de si próprios. Os personagens criados por Orwell, impedidos de tecerem entre eles relações directas, não são capazes de se olhar em oposição à sociedade e por isso lhes está igualmente vedada a solidão. O clima de cinzenta desesperança que inspira o livro vem da impossibilidade em que os protagonistas se encontram de ver os outros e de se verem a si. Mas o resultado não é diferente no ambiente de morna euforia que vivem os personagens em O Admirável Mundo Novo. Constantemente em multidão, jamais se apercebem deles próprios e, portanto, também não dos outros, nem do universo que os rodeia. De um modo subtil e indolor, sem repressão, apenas pela facilidade, o totalitarismo imaginado por Huxley assenta em bases mais sólidas do que o de Orwell, porque em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro o regime atravessa frequentes crises internas, que de cada vez tem de vencer e superar, enquanto a permissividade e a assimilação desarticulam os mecanismos da contestação muito antes de ela poder esboçar-se.
No centro de ambas as obras, apesar de tão diferentes, ou até opostas, está uma mesma problemática, que se resume no antagonismo entre solidão e isolamento e, portanto, na necessidade de articular solidão e relacionamento. Esta é a questão crucial que, mais de meio século antes, já Dostoyevsky enunciara na parábola do Grande Inquisidor, tal como Ivan Karamazov a narrou a Aliocha, o irmão mais novo. Cristo regressara ao mundo, na Sevilha dos Reis Católicos. Não proferira uma palavra, nem era necessário, a multidão reconheceu-o pela aura que dele emanava e começou a segui-lo. E o seu cortejo encontrou-se com o do Grande Inquisidor, que o mandou prender e trazer à sua presença.
"De novo tu!", o Grande Inquisidor acusa o Cristo, em termos que não são literalmente os do romance, mas nem são apenas meus também, pois pertencem a todas as sociedades modernas. "Tu de novo, para destruires a obra que nos demorou quinze séculos a perfazer e voltares a difundir os teus erros! Apelando para que cada um se tornasse livre, assumisse o seu destino e fosse responsável, trouxeste à humanidade a infelicidade. Pretendeste confrontar cada indivíduo com ele próprio e com os outros, deixando-os assim nas incertezas da revolta e obrigando-os à angústia das deliberações, ao peso das escolhas. Mil e quinhentos anos nos foram precisos para libertar as pessoas da responsabilidade e deixá-las felizes, com o humilde contentamento da submissão. Sou eu quem agora carrega a dureza das opções necessárias e a memória de as ter tomado. Nos meus ombros assenta toda a infelicidade do mundo, de que alheei os homens". Perante Cristo, o Grande Inquisidor coloca-se como outro Cristo, pois também ele redimiu a humanidade; mas é um anti-Cristo, afastando-a do conhecimento e da responsabilidade, que reserva para si, com todos os tormentos e culpas da decisão. A esta infelicidade ficam imunes os outros, a quem basta seguir caminhos já traçados. A passividade é sinónimo da ordem e obedecer é delegar a responsabilidade em quem comanda. O Grande Inquisidor apresenta-se perante a humanidade para ser investido da responsabilidade colectiva e do inerente sofrimento. Porque é o único a decidir, tem de ser o único a conhecer e, por isso, é o único a padecer. Se O Admirável Mundo Novo e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro marcam os limites do totalitarismo possível, confirma-se uma vez mais que a reflexão de Os Irmãos Karamazov concentra os problemas cruciais do nosso tempo.
Para Orwell o Partido pode ser absolutamente totalitário porque os homens são incapazes de ser livres e encarar a verdade. Só uma minoria de indivíduos excepcionais consegue fazê-lo e esses, ou são aniquilados, ou convertidos em dirigentes. O'Brien sabe e sabe tanto que ele mesmo produz o saber da fictícia oposição. É esta a condição para que a oposição não exista: que sejam dirigentes os que poderiam ser opositores. Mas, enquanto chefes, a sua capacidade de conhecimento e de sofrimento não tem repercussões críticas. Eles não fazem senão apropriar-se da crítica alheia e são capazes potencialmente de criticar para que mais ninguém o seja realmente. Também para Huxley a sociedade pode ser absolutamente totalitária porque aos indivíduos que, apesar das manipulações biológicas e do condicionamento moral, conseguirem desenvolver uma capacidade crítica é dada a alternativa do exílio, que corresponde a uma anulação social, ou da ocupação de postos de chefia. Mustapha Mond conhece o diferente, pode comparar e tem de decidir. Mas fá-lo para que ninguém mais o faça.
A liberdade equivale à necessidade de lucidez. Na parábola do Grande Inquisidor, Cristo teria vindo ao mundo para retirar as pessoas do alheamento e colocá-las perante a exigência de se verem a elas e aos outros. Se ser livre é aceitar sobre si a responsabilidade e o inerente sofrimento, enquanto os homens lhe fugirem não haverá sociedade livre. A liberdade equivale à necessidade do sofrimento. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro a única felicidade possível vem da ignorância, que é constantemente promovida. Em O Admirável Mundo Novo a felicidade vem da abundância imediata, num mundo de desejos pré-limitados. Em ambos os casos esta felicidade é um isolamento que se ignora.
O quê, até agora, tem impedido essas utopias de se realizarem em todo o seu horror? Precisamente aquilo que os autores menos levaram em conta: a capacidade de luta dos oprimidos, dos explorados. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro os trabalhadores, embora se relacionem directamente fora do âmbito estrito das hierarquias, são paradoxalmente incapazes de se revoltar. Apresentados como inconscientes da sua actuação, num quadro ideológico em que a palavra justa condiciona a prática eficaz, eles não põem em perigo o regime. Também em O Admirável Mundo Novo é impossível a revolta colectiva, pois as hierarquias profissionais foram convertidas em diferenças biológicas e o socialmente inferior passou a ser intelectualmente limitado, além de condicionado moralmente. Num caso como no outro a hipótese de lutas é afastada e por isso pôde Orwell extremar o marxismo dogmático na utopia do terror absoluto e pôde Huxley levar o pensamento liberal ao extremo do totalitarismo permissivo. Se em ambos os modelos se introduzir a actuação autónoma por parte dos trabalhadores, a sua capacidade de desenvolver na luta relações sociais alternativas, aqueles regimes extremos tornam-se irrealizáveis – e é o que tem sucedido.
O quadro genérico deste tipo de utopias totalitárias é o de uma sociedade sem contradições, quer porque sejam sistematicamente reprimidas, quer porque sejam sistematicamente assimiladas. Mas uma vida sem contradições é estagnante e desprovida de criatividade, sem mesmo ser capaz de se reproduzir. Não pretendo substituir estas utopias por outra. Parece-me possível falar do futuro na negativa, afirmar que existem no capitalismo condições para que o seu fim venha a ser também a destruição do próprio sistema de exploração e, com ele, da divisão em classes sociais. Mas isto não significa que proponha positivamente o modelo de qualquer tipo específico de sociedade. A eliminação de todas as formas de exploração representaria a abolição de um dado tipo de contradição, e não a abolição de todos os tipos de contradição. Por isso uma sociedade sem exploração, se alguma vez vier a existir, não será uma sociedade onde a busca da lucidez não seja difícil e onde não ocorra o sofrimento.
Ser capaz de enfrentar directamente a luz crua, com as dificuldades do conhecimento e o sofrimento, é a única liberdade digna desse nome.

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